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Quando a pequena Alice arrebatou me coração em Dothan

Por Jefferson Wanderley dos Santos

Data de Publicação: 10 de Abril de 2015

Vou lhes contar uma história de amor. Uma paixão que começou quando ainda era solteiro, portanto, segura e sem traumas.

Antes, porém, é necessário se contar como o encontro aconteceu, ainda aqui no Brasil. O início não é alegre tampouco, muito pelo contrário, é trágico.

Uma bela, quente e enluarada noite em Natal RN, estava de missão de Alerta SAR (Busca e Salvamento) para a atividade aérea na Base de Natal. Saí da sala de pilotos para receber a tripulação de outro helicóptero, um Bell 205, antigo, adquirido do patrimônio militar americano após a desmobilização de tropas da Guerra do Vietnam.

A tripulação cansada de um dia exaustivo, cumpria uma missão de instrução, noturna, em vôo de instrumentos para a formação do mais jovem dos pilotos a bordo.

Um papo alegre e descontraído teve lugar enquanto a aeronave era abastecida para, após, retornar ao Recife PE. Concluída esta fase nos despedimos e, pelo avançado da hora, prosseguimos para nosso quarto ao lado da sala de pilotos, na boca da pista de pouso. O motivo era o acionamento noturno intempestivo. Afinal, nossa missão era de Busca e Salvemento, e o sinistro não dorme.

Esgotado logo conciliei em sono sendo acordado na madrugada para decolarmos em busca de nossos amigos que haviam sumido na rota. Três horas depois, próximo ao raiar do dia, estávamos pousados ao lado dos destroços e, no amanhecer, iniciamos os procedimentos. Eu ajudei o médico SAR a separar corpos sem cabeça, para serem ensacados e, no necrotério, os corpos serem totalmente separados, uma vez que dois deles morreram, carbonizados, abraçados: Os dois mecânicos sentados no espaço destinado aos passageiros. Os pilotos não tiveram tal oportunidade por serem separados por um largo painel central e os bancos, à prova de balas, requisito da guerra, mantido por nós.

Apesar de estar de macacão e luvas, o cheiro de meus amigos carbonizados ficou em minha pele por algum tempo, da mesma forma, a marca.

Dias depois fui um dos encarregados de iniciar a investigação daquele acidente, inédito na Força Aérea Brasileira posto ser uma separação do rotor principal do corpo do helicóptero. Durante o resgate o rotor foi encontrado em uma fazenda, semi-intacto, a mais de quatro quilômetros de distância do que sobrou do FAB 8540.

Como um dos investigadores, aprofundei-me na pesquisa e li os manuais, em inglês, da Bell Hellicopter e do USArmy, na íntegra. Tomou-me quase dois meses ininterruptos. Nada de eventos com separação de rotores.

Por sorte, o Exército Americano ofereceu algumas vagas para um curso de investigação de acidentes aeronáuticos em helicópteros (Sim, eles podiam se dar a este luxo.) na Escola de Formação deles, no Fort Rucker, Dothan, Alabama USA. Era a singela e interiorana "Dothan de Alice".

Para se encontrar com minha paixão que nem imaginava vir a conhecer, tive que disputar uma vaga com outros oito oficiais, sendo só eu um "liutenant full" ou para os íntimos, um mero primeiro tenente. Dentre os oito havia dois tenentes-coronéis, um deles secretário particular do Exmo Sr Presidente da República. Imagina-se como entrei na sala de prova ao me deparar com meus competidores.

Bem, ali, no desabrochar da carreira tive a primeira lição de democracia e meritocracia. Apesar da mídia, de uma forma geral, incutir na cabeça da sociedade brasileira horrores sobre a vida em caserna, meus trinta e cinco anos de serviço ativo ensinaram-me tudo o que sei de respeito ao próximo, trabalho em equipe e, sobretudo, meritocracia.

Pois bem, o teste dividiu-se em duas etapas, uma prova no velho e lendário Campo dos Afonsos e a segunda fase, prova escrita e entrevista, no Consulado dos EUA no centro do Rio, ambos em RJ. Ao final, eu, o first lieutenant (insisto porque o aplicador da segunda prova, o Major Bell, ficou incrédulo, enfim...) logrei a maior média das duas etapas.

Voltei para casa preocupado e ressabiado, achando que apesar de ter feito minha parte e ter saído bem na foto, a vaga deveria (e a lógica indicava) ser do secretário do Presidente. Ledo engano, ledo engano.

No primeiro dia útil após o fim de semana, meu comandante me chama em sua pequenina sala e me felicita. Aproveitou para contar o que houve em Brasília, sede de nosso Comando-Geral Operacional. Nosso Comandante-Geral, em reunião, tratando da vaga do curso perguntou:

— Qual é o critério?!?

— A maior média?!

— Quem tirou a maior média?!?!

— O tenente?!?!

— Vai o tenente!! Câmbio!!

— Próximo assunto na pauta!!

E lá fui eu, feliz e lampeiro, para o interior dos States. Para a pequena, porém decente, Dothan, cidade que nunca tinha ouvido falar, tampouco tinha lido nos meus trocentos livrinhos de Faroeste (lá eu descobri que era "Far West") que lia, com avidez, um a cada dia, na minha época de estudante no Pedro II, do Engenho Novo RJ.

A segunda e rica lição que tive foi lá, no quartel. Um centro de instrução de aviação, mundial, em helicópteros. Dali os pilotos saíam, de fato, para o combate. A segunda lição ocorreu durante um dia de inverno inesperado, onde tiritávamos de frio do lado de fora do velho prédio, um coronel full americano, três tenentes-coronéis, dois majores e um bocado de oficiais da reserva ("warrant officer", mas no serviço ativo).

A lição foi constatar que enquanto um velho e barrigudo sargento, chamado de Mr Summers, não concluía a vistoria do prédio, ninguém, absolutamente, ninguém entrava. Somente após ele pendurar na porta, do lado de fora, um formulário de inspeção, repleto de itens com "checks" e sua assinatura com um carimbo em verde dizendo "Cleared" é que entrávamos. Todos sem exceção, de coronéis a tenentes aguardávamos, no frio, a liberação do prédio. Aquilo sim era disciplina intelectual, seguir regras, ser metódico e sistemático. Guardei aquele exemplo e minha bela Alice, na memória e no coração por muito tempo.

Bem, os dias se passaram com aulas detalhadamente exaustivas para todos, afinal, acidente aéreo era investigado às raias das minúcias. E isso o americano sabe fazer muito bem.

Descobríamos, por análises de "cases", vários erros do Fator Humano. Todos tinham origem em, um dado momento que precedia ao acidente, a tripulação ou alguém não ter seguido a regra, o "checklist", o previsto, o "compliance". As instruções eram claras, cristalinas: "Must comply with": Deve se proceder desta forma. Manuais e regras eram levados muito a sério. O "By the book" era quase um mantra, uma religião.

Confesso que todos aqueles casos pululavam minha mente. Eu ainda com os resquícios da surpresa de ter sido priorizado em detrimento de oficiais muito mais antigos. Ainda com o temor de chegar ao quarto do hotel e achar uma correspondência determinando minha volta por decisão superior. E ainda tentando entender o inglês absolutamente caipira e "peculiarizado" de meus simpáticos e amáveis anfitriões.

Eu estava desesperado em meio a todo aquele tumulto, encontrar um referencial que me evidenciasse uma linha básica de raciocínio, algo que me fizesse prosseguir no curso além de decorar fórmulas de física, itens de leis e regulamentos americanos, absolutamente fora de minha vida e idiossincrasia latina usual. Seguir "by the book" no Brasil, mesmo em quartel, só se fôramos Atlantis e Lemurianos...nem pensar.

Até que minhas preces foram ouvidas. Exatamente em um domingo à tarde, quando fui assistir a um culto em uma igreja americana. Era apostólica romana, mas o padre fez um discurso maravilhoso sobre responsabilidade cristã e ética social.

Ao fim, fui visitar os stands de vendas, comuns aos domingos onde famílias inteiras iam às igrejas para, também, se socializar.

O porão da igreja abrigava uma antiga biblioteca pública, então destinada a vendas dos livros como sebo. Lá, procurando um romance leve para ler, algo absolutamente fora de acidentes aeronáuticos e leis que me pudesse enlevar um pouco, pois recusava-me a ficar preso na televisão em minhas horas vagas.

Em um banquinho se equilibrando encontrei Alice. Seu cheiro não era bom, mas não resisti à tentação de tê-la em minhas mãos, absolutamente maravilhado. Passei a mão nela, ainda hipnotizado. Tirei-lhe o pouco de poeira em suas vestes e comecei a lhe explorar. Fiquei fascinado com as figuras, desenhadas à lápis. Ali encontrei a figura com o breve texto abaixo que nunca mais me esqueci. Sua voz tudo tinha a ver com o que vinha, até então, vivenciando. Era a resposta para minhas dúvidas existenciais naquela pitoresca cidade, no interior de um estado que para mim era nome de capa de bolsilivro de bangue-bangue: Alabama.

Ainda extasiado, mas cabreiro por ser visto e constatado naquele canto semi-escuro de um amontoado de livros e bancos espalhados aleatoriamente, em um porão frio de uma igreja. Acho que nem Hitcock poderia imaginar cena tão pouco usual.

Ainda ressabiado, aproximei Alice de meu rosto para sentir aquele agradável aroma de sua pele, sua capa, cheirando a um mofo gostoso e agradável. Não obstante ao preço, irrisórios 99 cents, já havia decidido levar minha jóia rara.

O diálogo e cena que arrebataram meu coração e que, por muitos anos depois, me orientou para o resto da carreira militar, como piloto civil ou líder de projetos organizacionais, vinha de uma pequenina, linda e adorável menina, com a mãozinha na testa , diante de cestos e utensílios jogados ao léu, perguntando ao Mestre Chapeleiro:

— Mestre, por onde devo começar?

Ao que o Mestre, com ar circunspecto e com a mão no queixo, lhe responde:

— Comece do começo, vá até o fim, então pare!!

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